terça-feira, abril 16, 2024
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Padre escritor tocou o sino, em Mineiros

Mineiros vai se tornando uma cidade pródiga, inclusive de padres: Sebastião Paniago Vilela; José de Souza Machado, Dom Zezé (in memorian); Ronaldo Rezende; Osmar Orotides de Rezende; Josias da Costa; Joaquim Carlos; Rodrigo Perisinnotto e Vinícius Rezende. E, mesmo assim, o sino daqui não toca há muito anos na Matriz do Divino Espírito Santo. Os padres filhos da terra, que estão em outras cidades, quando aqui comparecem gostam de ouvir o toque do sino. É uma questão sentimental, telúrica, por assim dizer. Ou porque são latinos, líricos, vindos de um ambiente e de um tempo em que a capela e o sino eram os únicos motivos de alegria da cidade. Talvez isso.

Mas os padres aqui residentes, norte-americanos, evidentemente, cheios de modernidades, desde que chegaram, acharam por bem acabar com as barulheiras do sino da Matriz. Nem em missa de defunto se toca mais o sino. Como mudou a cidade! Logicamente, de início, o povo andou estranhando. Também pudera! Há quase cem anos acostumado a ser chamado para a missa e os enterros pelo toque do sino, haveria de levar susto com essa inventiva. Ainda mais somada àquel’outra, também esquisita, de quando o papa resolveu cassar os direitos de vários santos, tirando do interior da Matriz algumas imagens. O povo tem sofrido.padre-mineiros

E de sofrimento em sofrimento e novidade em novidade, o mineirense já se ia acostumando com o uso do despertador, quando, inesperado, surge o Osmar Orotides, o quarto menino da terra a virar padre, dentre centenas que escapam dos seminários. Viera de São Paulo, trazendo o canudo de padre, porque padre também recebe diploma no Brasil. E quando fica no interior, queira ou não, vira até doutor. “Estudou foi muito”, diz o povo. “Como deve ser sabido um padre”, comentam nas esquinas. “O Osmar tá um padre bonito”, eu vi uma moça dizendo, “[…] e sabido”, outra respondendo. O Osmar apareceu, exatamente, no dia de Santos Reis, no ano da graça de 1979. E danou a bulir no sino da matriz do Divino, assanhando o povo, sobretudo as pessoas mais devotas. E foi aquela perguntaria sem fim. O povo querendo saber porque o sino tocava. E danou a repicar o sino: uma, duas, três vezes, escritinho nos tempos antigos quando a gente ficava esperando o “entremeio” do segundo e terceiro toques para ir à missa ou acompanhar enterro.

É que o Osmar, com a licença do bispo Dom Benedito, tocava o sino convidando o povo para sua formatura de padre. Isto é, sua ordenação. Ele é padre, poeta, escritor, além de pensador, desejou homenagear a sua terra querida, escolhendo por isso a Paróquia do Divino Espírito Santo como o mais puro recanto para sagrar-se sacerdote, aliás, salesiano, pela graça de Deus e o arrimo do povo que o assistira nascer, provocando então um barulho enorme na cidade. Seus pais, Orotides e Enedina, não se continham de alegres. Sua avó Ana, emocionadíssima, deu uma vaca pro churrasco e ainda confessou e comungou, pedindo adjutório pelas vocações sacerdotais. Seus manos, os que estudam fora, vieram de longe para abraçar o irmão presbítero. Até eu, que nunca pensei ser parente de padre, estou cá em novo status, tio de padre, por graça e obra dos amores da Chica, tia do danado ordenando. Um tio afim, parente analógico, queira ou não, do padre, apesar de não passar de um católico por tradição ou mais ou menos honoris causa.

A festa foi comprida e animada. Fui um dos primeiros a chegar à Igreja. O Osmar merece, mas a Chica ficava de lado, afobadíssima (fez até vestido novo pra festa), me amolando, eu que estava lendo a iniciação Aos Estudos Históricos, de Jean Glénisson, insistindo que tava na hora, além da inferneira da tocação do sino em plenas dez horas do dia. Os meninos aprontaram uma arrelia medonha na hora da saída, por causa de roupa e sapato. Queriam ficar bonitos pra homenagear o padre. Aliás, a cidade não se mexia, a não ser para cuidar da ordenação. Os tios de Osmar, além do mais, organizaram o almoço, auxiliados por tantos parentes e amigos, quase todos Carrijo de Rezende, família que já virou instituição do lugar, enquanto dona Alcira, empenhadíssima, confeitava o bolo do padre.

Nas maquilagens e botecos, esquinas e igrejas, em qualquer conversa, o assunto em discussão era a ordenação do Osmar. “O Osmar é padre”. “Vai ordenar-se hoje”. “Dizem que o sino vai tocar”. “Que escolheu Mineiros pra ser ordenado”. “Que a cidade está cheinha de padres: beneditinos, franciscanos, salesianos, madres, mestres, irmãos leigos”. “Flores pra ornamentar a Igreja”. “Tocar o órgão, o violão”. “O Zé Euclides é o tocador”. É um negro que a ideologia dominante chama da “alma branca”. É cursilhista, artista, sabe tocar e cantar. Amigo dos Carrijo de Rezende desde antigamente.

A missa, soleníssima, já está considerada como a mais bonita que já houve na Matriz. Eu, pelo menos, nunca tinha visto tanto padre junto. Nem quando fui interno no Liceu Salesiano São Gonçalo, em Cuiabá, onde quase morri de rezar, tinha presenciado tanto padre reunido. De modo que a missa, liderada por Dom Benedito, além de solene e toda cheia de requififes, foi a mais bonita a que já assisti. Aliás, não vi ninguém reclamar. A família do ordenando sentou-se à frente. Até eu, tio afim do padre, tomei banco à frente. Pertinho dos padres. Tinha direito. Era tio. O povo comentava que a família toda estava de parabéns. Andei até recebendo cumprimentos. Foi assim que andaram duas horas de senta e levanta, tomai e comei, eu te absolvo. E o Osmar passando por profundas emoções, evidentemente, haveria de meditar, parafusando, essa história de se deixar a vida laico mundana, com tanta moça bonita, em troca do celibato, um tipo de solteirice inexistente, pois que o casamento era com a igreja, a comunidade, os Santos apóstolos, abstendo-se, por isso, em jura diante do bispo, dos deleites e delícias mundanos. Espero que Deus ajude o Osmar.

Como disse, Osmar não é só padre. Tem outros dons. Desde 1969, ofertou-me a sua estreia literária, “Sonhos e Insônia: Ramos de Manjericão”, uma coletânea de versos, crônicas, contos, retratando em sua maior parte a paisagem mineirense, em vários aspectos. A história de um promotor envolto na cachaça, em narrativa simples e gostosa, mostrando o cotidiano mineirense. Era um promotor boêmio, romântico, apaixonado pelas canções de Vicente Celestino e Nelson Gonçalves. Orador eloquente. Morria de amores por Bárbara Heliodora. Existiu mesmo. Mas não é aquele que foi sequestrado em uma noitezinha, perto da Pensão Sudoeste. Noutras linhas, Osmar incursiona a retratar a paisagem campesina mineirense, onde o pano de fundo são os animais, a partir de pássaros, bezerros, cavalos, sem olvidar os latidos de cachorro, os currais, os monjolos, os ventos, o estrume, as campinas, recordando, assim, suas origens rurais. Noutras páginas, mostra os tipos da cidade, o Zé Pinguinha, peão do padre-escritor. O Juquinha Sorriso, personagem da história que mais gostei. Um menino engraxate ali da Primeira Avenida, antiga Rua Minas Gerais, Rua do vai e vem e da Pensão Sudoeste, uma das mais velhas do lugar. Foi ali que o padre-escritor viu e flagrou o engraxate trabalhando: “Juquinha, camisa rasgada, cabelos na testa, descalço, encardido, o pé na caixa. Limpa, passa a graxa, e escova e, por fim, lustra com a flanela que encolhe, estica e estala”.

Com mais curso de teologia e filosofia, queira-se ou não, Osmar tomou ares de pensador. Ficou meditativo, arredio, discreto, esquivo, tranquilo, parecendo indiferente. Talvez por isso já tenham dito que todo poeta tem um pouco de filósofo. Dessa nova fase de sua vida, na qual, por certo, lera e conhecera os escritores e apologistas da filosofia cristã – foi que lhe surgiu o mais recente “Conversando com Deus”, das Edições Paulinas que, pelo título, já revela o Osmar confiando no que se chama sobrenatural e até acreditando nas revelações divinas. Trabalho em 2ª edição, de fundo místico, se endereça especialmente aos jovens. Essa “conversa com Deus” retrata o Osmar padre, como deveria ser. Contudo, sem abdicar de ser poeta, buscando autenticidade, na existência divina. Deve ser por isso que louva e reza – em prosa e verso, por todos nós, sem omitir nem a prostituta, a quem ousa chamar de irmã, conforme a prece poética da página dezessete:

“Era uma mulher. Era uma prostituta,

Via-se pelo olhar, pelo seu jeito de ser, de andar…

Era tua filha, tua irmã, Senhor.

Era, é minha irmã. Minha irmã”.

(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHG-GO, UBE-GO, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – martinianojsilva@yahoo.com.br)

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