Navio negreiro era a embarcação que transportava os escravos da África para as Américas, assim como partes da Europa, podendo também ser o nome do indivíduo que aprisionava, transportava ou comercializava escravos negros, nesse contexto surgindo o termo no século XVIII. É também o nome de livro epigrafado, tradução Luciano Vieira Machado, Companhia das Letras (2007), do experiente historiador inglês, Marcus Rediker, narrando e descrevendo o aspecto mais terrível da escravidão moderna que, segundo João José Reis, hábil historiador da Universidade Federal da Bahia, foi o tráfico transatlântico de africanos, vitimando pelo menos 12 milhões de pessoas, de 30% a 40% mortas no próprio trajeto, evidenciando uma história humana das mais trágicas que se possa imaginar, em pleno mar, de um a outro lado do esplêndido Oceano Atlântico, tendo como objeto de estudo o navio negreiro e quem nele trafegava, voluntária ou involuntariamente. Trata, sobretudo, do tráfico capitaneado pela Inglaterra, extensivo aos Estados Unidos, no século XVIII, expondo a mais sórdida brutalidade contra os escravos presos, esprimidos em porões fétidos, desesperados e humilhados pelo prazer sádico de “pessoas” dedicadas ao comércio da carne humana; notando-se que o autor, especialista da história marítima, da qual escreveu diversas obras, conseguiu tornar tangível esse que foi o episódio mais fatídico daquilo que o célebre erudito e ativista afro-americano W. E. Dubois qualificou como “o mais grandioso drama dos últimos mil anos da história da humanidade”.
Principalmente no Brasil, o navio negreiro foi também chamado “Tumbeiro”, geralmente navio de pequeno porte (200 toneladas ou menos), havendo até um livro chamado Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil, de Robert Edgar Conrad, tradução Elvira Serapicos(1985), no qual, alémde uma acurada análise e exaustiva descrição do tráfico dos escravos africanos para o nosso País, estudando inclusive o tráfico interno, se vê que de tantos escravos mortos durante a viagem (30% a 40%), a embarcação converteu-se numa verdadeira tumba, justificando o apelido “tumbeiro”, que, aliás, nunca mais conseguiu ser somente o indivíduo que conduz o caixão à tumba, ou o que a semântica histórica definiu pejorativamente comodesocupado; não podendo esquecer que, de todo modo, foram os navios negreiros, pouco importando se chamados “tumbeiros”,a peça-chave do sistema escravocrata que aqui vingou por quase quatro séculos, para não dizer, a principal “tecnologia” que tornou tudo isso possível, já se vendo que muito se escreveu sobre a escravidão e seu sistema de plantations, principal empregador-explorador da mão de obra africana no Novo Mundo, contudo, semfazer o mesmo com relação ao navio negreiro, não raro as obras citadas, com destaque a do grande pesquisador e emérito Marcus Rediker, por certo uma das mais admiráveis e consistentes já escrita até o presente, mostrando o que aconteceude pior e mais torpe no escravismo moderno, deixando desdobramentos do seu capitalismo iniquo, até hoje em dia, curiosamente ainda mantendo suas escravidões pelo mundo afora, conformea lógica política neoliberal, frequentes no Brasil.
Com interessante introdução, seguida de dez capítulos argutamente elaborados, exibindo leitura sedutora parecendo textos de um romance histórico, justifica trinta anos de sapientepesquisa do autor em arquivos marítimos, onde, pacientemente, conseguiu encontrar “fontes” da história capazes dedesvendar os mais terríveishorrores verificados no interior de um navio negreiro, nunca dantes expostos ou descritos em um livro de modo tão lúgubre e verdadeiro, escrevendoassim uma história sem precedentes dessas embarcações e de seus passageiros, destacando como maiores vítimas dessa brutal violência a “carga humana” dos cativos. Como assinala oportuno texto no anverso do livro: “Ele reconstrói com detalhes sombrios a vida e a morte de escravos e marujos, os desmandos e a perversidade dos capitães, o dia a dia do navio – com suas doenças terríveis, motins e violência –, sem esquecer-se dos detalhes técnicos e das principais diferenças entre os vários tipos de embarcação dedicados ao comércio de carne humana”, acrescentando:
“Descrevendo casos impactantes – como o da escrava que foi jogada ao mar amarrada em uma cadeira para não contaminaros outros cativos com varíola ou do capitão que nutria um prazer sádico em manter seu inferno particular”; capitães que, na linguagem da época, não deviam ter “nem nariz nem dedos delicados”, pois seu trabalho era o que se podia qualificar de sujo, em quase todos os sentidos imagináveis, devendo ser por isso, certamente, que um capitão violento de navio negreiro, foi alcunhado Samuel Dor e um marujo sedicioso, apelidado Arthur Estourado, como se a impetuosidade da violência não fizesse parte da própria lógica do sistema político-econômico mantenedor do escravismo.
A guisa deilustrar ouso falar por último, dos quatro dramas humanos que ocorriam nos conveses oscilantes do navio negreiro, sapientemente narrados pelo ilustre historiador, tendo como principais atores o capitão do navio, a tripulação heterogênea, os escravos de diversas etnias e, mais para o fim do período, os abolicionistas da classe média e o público leitor metropolitano, tanto da Inglaterra como dos Estados Unidos, a quem eles se dirigiam. O primeiro drama girava em tornodas relações entre o capitão do navio e sua tripulação, aí aparecendo os homensduros,que exibiam presteza em recorrer ao chicote, aqueles que não deviam ter “nem nariz nem dedos delicados”, representados pelo Arthur Estourado e o Samuel Dor, de que falei, que deixaram muitos mortos nos conflitos, outros tantos cegos e muitos outros permanentemente inválidos.
O segundo drama ocorre na relação entre marujos e escravos. Caracteriza-se pela imposição de rações estragadas, por sessões de açoites, violência de todo tipo, incluindo estupro de escravas, executados pelos marujos, que obedeciam ordens superiores, levando os escravos a bordo, enviando-os ao convés inferior, alimentando-os raçoes estragadas,obrigando-os a se exercitar (“dançar”), como se estivessem sadios e discipliná-los com a disciplina do terror, tudo supervisionado pelo capitão carrasco, por incrível que pareça, deste drama emergindo greve de fome, suicídio e outros atos criativos da infinita autodefesa dos escravos. O terceiro drama, ainda no interior do navio, ésimultâneo ao anterior. Nascia do conflito e da cooperação entre os próprios escravos, consoante o autor, “como pessoas de classes, etnias e gêneros diferentes, jogadas juntas indiscriminadamente no horror do convés inferior do navio negreiro”. Foi aí que a multidão de negrosde todo tipo “agrilhoados”, passou a inventarmeios de trocar informações “valiosas sobre todos os aspectos” de sua condição de encarcerados, assim passando a opor, evidenciando uma reação criativa e de afirmação do seu instinto vital: inventou linguagens, novas práticas culturais, novos vínculos, desse modo emergindo a ideia fraternal de serem“companheiros de bordo”, significando irmão ou irmã, um parentesco “fictício” mas bastante efetivo, “… substituindo a fraternidade destruída pelo sequestro seguido de escravização na África natal”, devendo ser este o capítulo mais glorioso de todo o período, com remanescentes no Brasil onde a fraternidade de origem africana continua viva na própria palavra “malungo”, significando irmandade de todos os que nascem numa mesma época, sejam racionais ou irracionais.
O quarto e último drama ocorreu fora do navio, na sociedade civil britânica e norte-americana, quando os abolicionistas traçaram inúmeros terríveis retratos da tal Passagem do Meio para o público leitor metropolitano, relatando e tendo como foco o que se passava no navio negreiro, assim difundindo as atrocidades ocorrentes no interior da embarcação, que passaram ao conhecimento público, facilitando o combate ao tráfico, alcançando fazendeiros, banqueiros, funcionários do governo, ampliando cada vez mais o movimento abolicionista, tornando a violência real para os povos britânico e americano, conforme relata o autor “…o terror pervasivo e totalmente utilitário do navio negreiro, que era, na verdade, o traço que o definia”, devendo ser por isso, por certo, que o “grande drama” teve um poderoso ato final, assim narrado por Marcus Rediker: “O diagrama do armador do navio negreiro Brooks – que mostrava 482 escravos “apinhados” nos conveses da embarcação – terminou por contribuir para que o movimento conseguisse a abolição do tráfico de escravos.”
(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado, IHGGO, UBEGO, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM, e-mail: martinianojsilva@yahoo.com.br)