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Comunidade Negra do Cedro

Publiquei no jornal, Imprensa Livre, de Mineiros, direção do jornalista Fernando Brandão, de 25/10 a 15/11/97, texto em epígrafe, ora republicado, na íntegra.

Escritor Martiniano Mineiros
Martiniano J Silva

O topônimo Cedro, que constitui a comunidade de um povo de origem africana do município de Mineiros, no extremo Sudoeste de Goiás, surge na história como uma homenagem ao córrego que toma esse nome, às margens do qual havia uma mata ciliar ou de “galeria” de exuberante vegetação, formada, evidentemente, por árvores de grande porte, tais como peroba, guariroba, jatobá (árvore do fruto grande e duro, pela linguagem tupi) e com maior destaque, Cedro, da família das meliáceas (Cedrela fissilis), raiz de onde emerge o nome do córrego e daquele incomum povoado, justificando o gentílico cedrino, o povo que nasce e mora no Cedro ou que é natural de lá. Portanto, terra afetiva dessa interessante comunidade que, até esta data, foi alvo de pouca atenção dos estudos de historiografia regional, e menos atenção ainda, dos estudos de resistência sociopolítica dos escravos.

Nas raízes ancestrais, os cedrinos têm origem, étnico-histórica provavelmente banto e descendem de escravos procedentes de Minas Gerais, com mais realce do antigo “Sertão da Farinha Podre”, atual Triângulo Mineiro, de onde foram trazidos pelas famílias que ocuparam e povoaram o Sudoeste de Goiás, principalmente as que fundaram o município de Mineiros, consoante, aliás, afirmávamos em 1974: Destaque-se que os negros escravos chegaram no Sudoeste de Goiás com os bandeirantes pioneiros do nascer do século dezenove, ainda sujeitos a muitos tipos de subordinações. Nessa condição, os últimos a chegar foram os cedrinos, que em grande parte vieram com os Carrijo de Rezende e os Teodoro de Oliveira de Minas Gerais, Pois sim, chegaram com os “irmãos Carrijo”, Joaquim Carrijo de Rezende, líder do grupo e posteriormente coronel da Guarda Nacional, Elias Carrijo de Rezende, que conseguiu ser major, e os mais novos, Caetano Carrijo de Rezende, José Carrijo de Rezende, Francisco Carrijo de Rezende, “entreverados” das mulheres (irmãs dos mesmos), Flávia, Zita, Maria Luíza e Carolina.

Acrescentando: Os cativos ajudavam na condução de uma guaiaca, balas de espingarda, um cinturão com bolsos de guardar dinheiro, um engenho de serra e alguns outros apetrechos. Vieram do chamado “Sertão da Farinha Podre”, região que pertencera a Goiás, hoje Triângulo Mineiro. Figuravam como cedrinos, Jerônimo Urso, Antônio Felício, Caetano dos Santos e outros e outros que eram arrieiros da tropa e candeeiros de um velho carro de bois.

Por volta de 1873, as terras de várias fazendas que posteriormente vieram constituir o município de Mineiros, já estavam escrituradas em nome das famílias acima mencionadas, fato que mostra que ditos fazendeiros já estavam na região acompanhados por seus escravos, dentre eles, os que fundaram e organizaram a comunidade do Cedro, à margem direita do Rio Verdinho, afluente do Paranaíba, onde, segundo informam velhos descendentes de escravos da região e comprovado posteriormente, o escravo Antônio Francisco de Moraes, apelidado ‘Chico Moleque’, que seria originário de Bonsucesso, em Minas Gerais, foi a mais resistente liderança daquela comunidade. Contam que por sua garra e vibrante coragem, trabalhando para os fazendeiros, conseguiu comprar sua própria liberdade, a da sua mulher Rufina e da filha, Benedita, que veio a ser uma exímia parteira na região. Um pé de café e outro de manga, ainda produzindo; um esteio de bica e centenários palanques de aroeira, furados à moda antiga (com o “estrado”), continuam no Cedro, fazendo parte da vegetação dos quintais e das velhas cercas de currais dos descendentes de Chico Moleque.

Pode-se somar também com o escravos, além de Chico Moleque, na mesma época (início de 1973), Caetano Francisco dos Santos, Geraldo Francisco dos Santos, Silvestre Francisco dos Santos, Jerônimo “Urso”, José Sabino, Antônio Felício, incluindo-se, também, dentre outros, o pai do ex-escravo Luiz Pereira Sinfrônio, cognominado “Luiz Piuna”, cujo nome não conseguimos detectar.

A bem dizer, os negros mineirenses, onde os cedrinos são destaque por razões óbvias, no contexto da história do Brasil, procedem realmente de Minas Gerais em sua maior parte; São Paulo, Nordeste, especialmente a Bahia e Mato Grosso, sendo que já havia na região os “negros da terra”, representados pelos ameríndios primeiros, os modernos e os contemporâneos, ainda existentes na forte remanescência de sua cultura.

Segundo, ainda, velhos remanescentes de “Chico Moleque”, foi ele, com a mulher Rufina, arrolado e descrito em inventário do qual saiu como herança para João Pantaleão de Moraes e Virgínia, fato, no entanto a ser melhor esclarecido nos cartórios específicos de Rio Verde, Jataí e Caiapônia, antiga Torres do Rio Bonito. Entre outros, são filhos de “Chico Moleque”, Geraldo, Rita, Benedita, Silvestre, Caetano e Jerônimo.

Assim, grosso modo, pode-se dizer que os antecedentes dos cedrinos foram trazidos como escravos, “a pé”, tangendo tropas ou conduzindo carro de boi, que transportava guacas, balas de espingardas, engenho de serra, a indispensável “traia de cozinha” e muitos outros apetrechos. Eram escravos dos Moraes, dos Carrijo, dos Rezende, assim como dos Vilela, dos Carvalho e de outras famílias povoadoras da região a partir de 1820, especialmente, as das últimas décadas daquele século. Pode-se dizer, portanto, que o povoado do Cedro, com mais de 100 anos de existência, insurgindo-se contra a ordem hegemônica escravista, é um remanescente de um obstinado Quilombo comandado por “Chico Moleque” até a aquisição da liberdade dos escravos e das terras do lugar. Configura, assim, mais uma territorialidade negra, no “espaço dos seus iguais”, formada no contexto histórico da economia agropecuária e povoamento da região do Sudoeste de Goiás, iniciado por Itumbiara, Rio Verde, Jataí, Caiapônia, alcançando Mineiros por volta de 1873, através da famílias Vilela, Carvalho, Carrijo, Rezende, Oliveira e outras, proprietárias de escravos, que se opunham às estratégias e resistências dos mesmos.

É assim que surge também a revolta dos fazendeiros da região onde Jataí é destaque. Intensamente preocupado com a falta de trabalhadores e a iminente rebelião escrava, José Manoel Vilela, um dos fundadores de Jataí, chegou a querer envenená-los ao tomar conhecimento de que tinha havido a abolição dos mesmos em 1888. Esse fato, embora tratado como assunto de “pé de página” e ainda dependia de maiores esclarecimentos, foi narrado pelo escritor e historiador Basileu Toledo França: “Conta-se que José Manoel Vilela. Revoltado com a Lei Áurea mandou preparar um banquete envenenado e ofereceu aos ex-cativos, como presente de grego. Carvalho Bastos ao receber o convite para levar os seus, ordenou-lhes que nada tomassem ou comessem. Iriam por mera cortesia à casa de Vilela. Contudo, certo negro conhecido por Chico Librina, não se sabe por que, teria bebido um gole de cachaça e saiu com a mão no estômago, para cair morto na escada de tapiocanga, no largo da igreja. Com isto os companheiros se salvaram”.

Acrescentando: “A informação, pela sua gravidade e incoerência com atitudes elevadas do fundador, exige comprovação”.

A comunidade cedrina, que nunca viveu sem vivas interações com os demais negros, inclusive de Jataí, está localizada a 5 quilômetros do centro-urbano de Mineiros. É, sem dúvida, um grande referencial telúrico, político e cultural da “comunidade negra” do Brasil Central, não sendo a sua resistência ao regime servil, nem ao neoliberalismo vigente, um fenômeno secundário e de caráter meramente antiaculturativo, como tem interpretado e entendido a corrente historiográfico-antropológica, mais preocupada com o âmbito cultural, mormente etnográfico.

São provavelmente 350 pessoas, na sua grande maioria, descendentes de “Chico Moleque”, representando mais ou menos 2% da população do município que, segundo dados do IBGE, numa projeção mais recente, é de 34.248 habitantes, num espaço de 9.096 km, correspondendo a 3.77,2 habitantes por quilômetro quadrado .

Realmente o Cedro é uma comunidade dotada de característica especial. Representa uma situação diferenciada, talvez inédita no Brasil Central, possivelmente no Brasil e nas Américas. É que os cedrinos, após muita luta, articulados como quilombolas, conseguiram fixar-se e residir em suas próprias terras, adquiridas através da ousadia e determinação de “Chico Moleque” e outros ancestrais ainda no século XIX. Comprova essa hipótese: Uma escritura de venda e compra lavrada nas notas do escrivão de paz Antônio da Cunha Vasconcelos, da Vila de Jataí, termo e Comarca de Rio Verde, Província de Goyaz, de data de 28 de abril de 1885, em que Galdino de Moraes e sua mulher D. Isabel Cândida da Silva venderam a Francisco Antônio de Moraes (Chico moleque) uma parte de terras da Fazenda Flores do Rio Verde, provinda de herança que tiveram de Vitória Maria da Conceição.

Em fins do século XIX, mais precisamente em 1889, a Fazenda acima referenciada foi dividida judicialmente, na qual saiu o quinhão pertencente aos cedrinos, então em nome de Francisco Antônio de Moraes, “Chico Moleque”, assim descrito: A partir da cabeceira do córrego Cedro, em rumo ao sopé do córrego Coqueiros; daí abaixo, no veio d’água e em rumo ao lado oposto do rio Verde (carinhosamente chamado “Verdinho”), no lugar Capão, águas vertentes até a barra do córrego Pinguela e respectiva barra do Rio Verde, daí, indo pelo espigão mestre, em limites com o córrego Cedro, ponto de partida.

Assim, o status econômico dos cedrinos foi sempre diferenciado, sobretudo numa região onde ser proprietário de “terras rurais” implica (implicava) ser tratado com distinção, pelo menos até a expansão e efetivação do capitalismo industrial-desenvolvimentista no ecossistema dos cerrados em 1970, quando se começam a empobrecer parcela dos fazendeiros da região. Note-se, por outra, que os povos negros descendentes de possíveis quilombos do Buracão, da Grunga e do Cerradão, também adquiriram terras nessas regiões, em territórios mineirenses e de Portelândia (Goiás), dentre eles, os Botelhos de Rezende, os Silvérios e os Gançalves. Não se sabe, porem, em detalhes, o tamanho da área primitiva.

(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado, da Academia Goiana e Mineirense de Letras e Artes,  IHG-GO,UBE-GO, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM -martinianojsilva@yahoo.com.br)

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