Naquela época eram assim relembrada a cidade de Mineiros no Jornal Regional de Jataí:
“Mineiros é uma cidade feliz e atrativa. Ela tem umas coisas que encantam e fascinam. Lugar bom de namorar, eu já disse. Ultimamente, porém, e não raro o seu jeito bom de província, com seus ressaibos do passado, ela tem se metido em requififes. Já anda cheia de adornos e atavios. Tem tomado ares de modernidade. Em tudo, posso assim dizer. Às oito da noite, o povo some, tenso à frente da tevê, assistindo às novelas. A zorra, aquele carroção conduzido por uma ou duas juntas de bois, aquele da roda revestida de pneu, que carreava cisco das ruas (os bem falantes só dizem lixo) não anda mais no perímetro urbano. A última que vi, há quatro anos, dava um trabalho medonho ao seu carreiro, que tentava adoidado parar os bois diante de um semáforo de sinal vermelho.
Os carros antigos também sumiram. O do Antônio Mecânico é um dos últimos. A festa de Santos Reis, que pertencia à paróquia do Divino Espírito Santo, virou um folguedo periférico. Ocorre na Baixadinha ou no Quebra-Dedo, onde os pudicos e fradescos chamam-na ‘festa profana’. Ambiente imoral, viciado, pouco recomendável, misturado, além de outros pejorativos.
As terras que pertenciam ao Patrimônio do Divino Espírito Santo, há quase um século, são hoje de uma entidade católica do Tio Sam, cognominada Padres Beneditinos de Atchison, com escritura passada, matriculada com CGC e CPF. A UDN virou ARENA. O PSD, MDB. Os cartórios prosseguem sendo da Candinha e da Chiquinha, do Paniago e do Oldon, além de um último, do Raimundo.
As ruas, que tinham nome de gente, se transformaram em algarismos. A que homenageava Leopoldo de Bulhões, que a maioria dos goianos não sabe ter sido Ministro das Finanças do Brasil, secou na aridez de um número. A rua Goiânia, que se prestava a homenagear a capital do Estado e, evidentemente ao poema de Manoel Lopes de Carvalho Ramos, além de ter sido a rua dos meus amores (o meu com a Chica, num tempo em que se namorava escondido, triscando, nervosos, debaixo da mesa os dedos dos pés uns nos outros, a sogra aí de lado) não passa de uma Sexta Avenida. Quer dizer: as ruas são ‘um’ ou ‘Rua um’; Avenida Dois ou Rua Sete; Rua Dez ou Quarta Avenida; Sétima Avenida ou Avenida Sete; Rua Nove ou Quinta Avenida. Fala-se até em rua P-2, rua P-3, rua P4, o diabo pintado de números, enquanto os pioneiros, e Castro Alves, Getúlio Vargas, Anhanguera, Afonso Pena, sei lá, foram omitidos, jogados no ‘ôio da rua’, sem reverência.
A usininha de luz, do Arquilino de Brito, virou Celg. O velho telefone, que alcançava até as fazendas, doado por José Feliciano, virou Cotelg e já se converteu em Telegoiás. A rua do Vai-e-vem desapareceu. Moça-donzela não anda mais nela. Foi substituída pelos carros e as lanchonetes, onde o amor e a bebida, evidentemente, se tornam mais fáceis. Não se beijava na rua por aqui. Hoje se beija até diante do padre.
Por aqui também o amor anda solto. Creio ser legítima a sua atitude. O amor nunca aceitou o tabu. Realmente é difícil saber se todos os beijos são castos, corteses, artísticos ou simbólicos. A verdade é que os pudicos por aqui, queira-se ou não, estão diminuindo. Também, pudera! Os poetas chamam ao pudor de timidez do corpo. Creio que os beijos daqui são sinceros, atuais, reverências como o do anel do Bispo. Vcês já notaram como se demora o beijo de pombos? Creio assim que os que se beijam estão certos. O beijo cavalheiresco sempre foi um sinal de respeito.
Uma senhora não se despedia de um cavalheiro sem receber, por cortesia, uma bicota na ponta dos dedos. Em Roma, os cardeais tiveram o direito de beijar as rainhas na boca. E o apóstolo São Paulo dizia aos seus fiéis que se saudassem por beijos santos: Salutatem invicem osculo santo, Floriano de Lemos, Correio da Manhã, 12/05/1940.
Como se vê, fiquei preso aos beijos. Quase ia me esquecendo que a capelinha do Divino Espírito Santo, e que tão bonitinha era, foi demolida. Predatoriamente demolida. Em seu lugar ergueram uma outra, meio sofisticada, de nome matriz. A rua do Sapo sumiu. Ninguém mais fala nela. Há mais de dez anos o sino da Matriz não toca. Para as missas das cinco ou seis da manhã, usa-se o despertador. As praças com raras exceções, como a da Bandeira e a do Rui Barbosa, foram invadidas pela frieza e presença de prédios públicos, construídos às pressas, sem visão do futuro, quebrando-lhes as paisagens, surrupiando-lhes o aroma das flores e a cativez dos jardins, furtando-lhes um resto do bucólico, causando desequilíbrio ecológico. Dos jovens nada posso dizer. Eles se apresentam por si mesmos.
Havia a praça João XXIII, em terras da Paróquia do Divino. Lugar bonito e tranquilo. Mas foi loteada e ananicou-se. Diz o povo que virou um ‘trenzinho miúdo’. O Biscoito Carrijo, gostosíssimo, servido às duas da tarde com café, além de outras quitandas e doces, não se serve mais a esse costume, a não ser as exceções em algumas fazendas. Em seu lugar, mais das vezes, usa-se o pão de sal ou a rosca doce, industrializados nas panificadoras antes chamadas padarias. Os hospitais, Samaritano e Nossa Senhora de Fátima, onde a medicina é uma das melhores do Brasil Central, são chamados ‘o de cima’ e ‘o de baixo’. Ou ‘o do Filgueiras’ e ‘o doutor Luiz’. Ou ‘o do doutor Carlos’ e ‘o do doutor João’. Ou ‘o do doutor Clodomiro’ e ‘o do doutor Demilson’, sem se esquecer que o povo acha que um é da UDN e o outro do PSD. Ou da ARENA e do MDB. Diz-se que um é dos protestantes e o outro dos católicos. O povo não deixa por menos.
O Grupo escolar Pedro Ludovico virou Coronel Carrijo. Os gaúchos chegaram e estão implantando o chê do Sul. Havia um time de futebol chamado Palmeiras, que virou MEC, que o povo diz ser um da UDN hoje ARENA, rival dos Santos, que afirmam ser do PSD, ora do MDB. O povo não perdoa. A missa que era em latim, é em português e mudou de horário. Existe a dos velhos e a dos jovens. Eu só vou nesta última. É mais animada. Tem violão e cantoria. O Euclides fica ponteando o violão e a gente achando bom, um pegado não mão do outro, rezando o Pai Nosso, a oração que o Senhor nos ensinou.
Como se vê, Mineiros – e que dizer das demais cidades brasileiras? – está ficando uma cidade sem memória. Aliás, vai-se convencionando dizer que o brasileiro é um povo sem memória. Mas tenho um consolo: ainda não consumiram a ‘baixada do Zequinha’ e a água aqui não tem cloro e vem da mina. Em Mineiros Eu bebo água da mina.”
Martiniano J. Silva
Texto maravilhoso, extremamente bem escrito e, por isso, capaz de evocar lembranças adormecidas . Nasci em Mineiros e aí vivi até 1969. Meu paí era alfaiate, Valdomiro Alfaiate, da turma de cearenses que um dia aportou na cidade. Ainda tenho muitos parentes por aí, como meus tios Valdemar, Zé e Alzira. Morávamos na rua sete, junto ao campo do Palmeiras. Lembro bem de como a política dividia a cidade. Quem torcia pelo Palmeiras era Arena; quem era Santos era MDB. A rivalidade era enorme, mas não chegava a impedir que as famílias se gostassem. Parabéns ao organizador do site, pois está contribuindo para preservar a história de nossa cidade, e ao mesmo tempo em que nos fazendo voltar no tempo, trazendo de volta lembranças de fatos e pessoas que marcaram nossas vidas. Lembro muito dos padres beneditino, D. Lucas, D. Eric, que celebrou minha primeira comunhão, D. Eriberto, D. Mathias, D. Totó, cujas missas eram difíceis de acompanhar pela dificuldade com o português. As lembranças são muitas. Vida longa para Mineiros e os mineirences