Disciplina, ou antes, a sensação de que há falta de disciplina entre as crianças e jovens de hoje, vem ganhando cada vez mais espaço na mídia, nas escolas, nas famílias. Muitas vezes, o problema aparece associado a casos extremos, como o consumo de drogas e o sexo irresponsável. O que está acontecendo? O problema reside, de fato, na “falta de disciplina”?
É hora de pensar sobre este assunto, que tende a se tornar cada vez mais importante. Afinal, disciplina é somente a face visível de uma questão mais abrangente e fundamental para o nosso futuro: a formação dos valores das nossas crianças e jovens. Pode parecer uma questão antiga, mas não é. Este trabalho de estabelecer valores de forma consciente e planejada – que podemos chamar de Educação Preventiva – é um desafio contemporâneo para pais e educadores, e é preciso assumi-lo. Noções como justiça, responsabilidade, autonomia, respeito a si e ao outro se mostram cada vez mais atuais, e influirão na capacidade de nossas crianças e jovens se realizarem em uma sociedade melhor.
O mundo muda
O mundo muda em ritmo vertiginoso, transformado pelas novas tecnologias, pela quantidade de informações produzidas e pela rapidez com que circulam. Crianças e adolescentes comportados, que obedeciam a regras somente por temor ou para agradar aos adultos, foram sucedidos por outros com acesso a mais informações, que questionam, pensam e encontram mais espaço para formular hipóteses sobre o mundo em que vivem. Devido a isso, o papel da escola mudou. Não basta apenas transmitir informações; é necessário formar um aluno que goste de aprender e saiba solucionar problemas.
O paradigma se alterou: o enfoque do ensino mudou do professor que ensina para o aluno que aprende.
A escola deve ensinar seus alunos a aprender continuamente, fornecendo-lhes os instrumentos para isso, as chaves do conhecimento. À escola cabe ensinar o aluno a pensar. Igualmente, precisamos atuar dentro de um quadro de valores que leve em consideração o fato de vivermos dentro de uma sociedade democrática, e que o bem-estar coletivo deve estar sempre presente nas decisões que tomamos.
Aqui surge o grande desafio. Como conciliar características de inquietação (cognitiva) com o respeito aos outros e às regras? Para responder a esta questão, precisamos entender melhor o conceito de autonomia.
Autonomia e heteronomia
No início da vida, a criança é o que podemos chamar de heterônoma, ou seja, precisa dos adultos para ajudá-la a agir de maneira adequada às diferentes situações que vive no dia-a-dia. Nesta fase, a criança aceita a imposição das regras e as considera universais e inquestionáveis.
À medida que cresce, aumentam suas possibilidades de estabelecer relações. Assim, percebe melhor a organização social e o ponto de vista do outro, passa a questionar regras que aceitava quase incondicionalmente e a perceber que algumas são combinadas por um grupo (e não são universais). As regras agora podem ser alteradas ou conservadas. Começa o caminho para a autonomia, que só será realmente alcançada ao final da adolescência. O papel do adulto neste desenvolvimento é importante. Ao mesmo tempo que orienta as ações da criança, deve explicar a ela o porquê destas regras, sua utilidade para o bom funcionamento de um grupo social e, principalmente, ensiná-la a relacionar os atos com as conseqüências que produzem. Isso fará com que a criança comece a pensar no outro e saia do egocentrismo natural. Ao participar da formulação das regras que serão então respeitadas pelo grupo, as crianças desenvolvem a cooperação e o respeito mútuo, pois aprendem que o que vale para elas, vale para o outro. Esses são fatores básicos quando falamos em disciplina.
A questão da autoridade
Há também muitos momentos em que usar da autoridade de pais é necessário. Para a criança pequena, por exemplo, é difícil relacionar os atos com conseqüências distantes. Não devemos dizer simplesmente “não faça isto porque estou mandando ou porque é feio”. É importante que se explique à criança porque deve se comportar de determinada maneira, como não bater nos amigos pois não devemos fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem, ou não mentir porque isso põe em risco as relações de confiança. O que estamos fazendo é tornar a criança mais consciente de seus atos, trazendo as conseqüências para mais perto dela.
À medida que a criança cresce, passa a conhecer as razões das regras, sendo capaz de entendê-las e de, portanto, segui-las por conta própria, independentemente de estar sendo vigiada, coagida ou orientada a fazê-lo. Quanto mais a criança adquire reais habilidades físicas e cognitivas, maiores responsabilidades podem ser dadas a ela. Quanto mais experiências puder ter no sentido de agir e verificar os resultados de suas ações, maiores possibilidades terá de estabelecer relações entre atos e comportamentos e, assim, caminhar para a autonomia.
Esse processo começa na infância e deve continuar na adolescência. Estaremos, assim, dando um passo muito maior do que buscar pura e simplesmente a disciplina. Estaremos formando pessoas com conjuntos de valores sólidos. Isso é educar de forma preventiva, e sempre é possível começar.
FORMANDO VALORES
Todo adulto precisa estar atento aos valores que transmite, em atos e palavras.
É necessário:
- sermos coerentes, ou seja, agirmos de acordo com os valores que pregamos;
- sermos consistentes, mantendo sempre as mesmas atitudes com relação aos fatos;
- fazermos promessas viáveis e cumpri-las, e nunca ameaças impossíveis de serem cumpridas;
- utilizarmos as conseqüências naturais dos atos, em vez de punições arbitrárias ou recompensas;
- dizermos claramente o que esperamos da criança, em vez de apenas dizermos não.
Helena Samara
Psicóloga
Diretora Pedagógica da Educação Infantil do Colégio Móbile
Fonte: Rede Pitágoras